Devemos ou não julgar?
O Significado de julgar
Sempre ouvimos expressões como “não toqueis nos meus ungidos”, “não julgueis para não serdes julgados”, ou frases afins, sendo utilizadas com o intuito de contrariar a prática do julgamento doutrinário.
Antes de mais nada, faz-se importante conceituarmos a palavra “julgar”, pois somente assim poderemos fazer o bom e correto uso dessa ordenança bíblica.
De acordo com a International Standard Bible Encyclopedia, as palavras “discernir” e “discernimento” ocorrem em três formas no Novo Testamento (dokimazo, anakríno e diakríno).[1] Duas delas têm raiz no verbo krino, cujo significado é “peneirar”, “distinguir”, “selecionar”, “separar”, “decidir” ou “julgar”.
De acordo com Vine, dokimazo significa distinguir, por à prova, provar, examinar, julgar com a expectativa de poder aprovar. É encontrada em 1 Ts 5.21 na ordenança de Paulo para avaliarmos todas as coisas, em Lc 12.56 no questionamento de Jesus aos fariseus sobre o discernimento do tempo e em Gl 6.4 no sentido de pôr à prova nossas próprias obras.
O verbo anakríno significa distinguir, examinar, esquadrinhar, interrogar, separar com o fim de investigar em um exame exaustivo. Esta palavra é usada por Lucas em 23.14, citando uma fala de Pilatos: “Apresentastes-me este homem como pervertedor do povo; e eis que, interrogando-o diante de vós, não achei nele nenhuma culpa, das de que o acusais”. Ela também ocorre em 1 Co 2.14 e 1 Co 4.3.
Diakríno significa distinção, discriminação clara, discernimento e juízo. Aparece em 1 Co 12.10 na relação dos dons espirituais, em Hb 5.14 se referindo à característica de um cristão maduro na fé e em Rm 14.1 dizendo para que não julguemos (condenemos) os fracos na fé.
Vine acrescenta, ainda, outra palavra, o adjetivo kritikós, cujo sentido é relativo a juízo, discernimento.[2]Strong também comenta que esta palavra faz alusão a julgamento, aptidão ou habilidade para julgar, discernir.[3] Esta é a palavra empregada no texto de Hebreus 4:12: “Porque a Palavra de Deus é viva e eficaz, (…) e apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração”.
Como podemos verificar, nosso adjetivo “crítico” deriva-se da mesma raiz. Normalmente olhamos para essa palavra em seu sentido pejorativo e assimilamos a pessoas que sempre reclamam ou que constantemente observam os defeitos e falhas.
Entretanto, “crítico” vem de “critério”. Um crítico de cinema, por exemplo, precisa realizar sua análise baseado em critérios pré-estabelecidos. Somente desta forma, ele poderá realizar uma boa avaliação e chegar a um veredicto consistente acerca dos prós e contras da obra cinematográfica.
Outro exemplo simples pode ser usado na figura de uma dona de casa que vai à feira comprar tomates. Ela sabe que não deve comprar qualquer um que esteja à sua frente. Possui critérios de escolha, de seletividade. Os que estão muito maduros ficam no estoque do vendedor, pois correm o risco de estragarem antes de serem aproveitados por esta mulher. Em contrapartida, os que estão num estado intermediário, isto é, nem tão verde e nem tão maduros serão mais provavelmente os escolhidos na compra.
Não é partindo do mesmo pressuposto que se escolhe o feijão que será consumido? Destarte, o ensino paulino é que julguemos todas as coisas, retendo o que é bom (1 Ts 5.21).
O Julgamento Hipócrita
Normalmente são usadas duas passagens bíblicas para contestar o trabalho apologista das Escrituras em contraste com um ensino heterodoxo: Mt 7.1-5 e 1 Cr 16.22.
Analisaremos em separado os dois assuntos em seções individuais. Nesta primeira comentaremos sobre o que Jesus proferiu em um dos trechos de Seu conhecido Sermão da Montanha (Mt 5-7).
Mateus 7.1-5, portanto, diz o seguinte: “Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós. E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.”
Tal passagem é constantemente utilizada na tentativa de encerrar uma discussão (no bom sentido da palavra) doutrinária. Quem se utiliza do texto supracitado entende que os apologistas estão julgando personalidades e/ou lideranças carismáticas.[4]
O texto é bem claro nos dizeres de Jesus. Não devemos julgar as pessoas como se fôssemos mais especiais, com ar de superioridade, falsa santidade, arrogância, vaidade, orgulho ou vanglória.
Muitas pessoas olham para terceiros e esquecem de averiguar seus próprios erros. Os fariseus eram duramente criticados por tal postura hipócrita.
Analisando Mt 7.1, Kuiper diz que “é claro que Jesus aqui proíbe o julgamento. A questão, contudo, é se Jesus proíbe todo julgamento, ou somente certo tipo de julgamento.”[5]
Para obtermos a resposta para essa questão, devemos observar uma das regras de hermenêutica: olhar o texto dentro de seu contexto. Se assim o fizermos, poderemos constatar dois pontos.
Primeiro ponto: Jesus não está proibindo todo julgamento, mas o julgamento hipócrita. Não podemos ignorar nossos pecados e condenar deliberadamente outras pessoas.
Jesus contou uma parábola em Lc 18.9-14 referindo-se a tal prática anticristã. Dirigiam-se para oração um fariseu (ícone religioso de seus dias) e um publicano (ícone dos pecadores). O primeiro agradecia a Deus por não ser como aquele cobrador de impostos e tampouco como outras classes de pecadores, a saber, ladrões, injustos e adúlteros. Não obstante, ele era um dizimista fiel.
Num olhar aparente e externo, o religioso era um modelo a ser seguido. Entretanto, o outro homem reconheceu seu lugar de pecador. Neste estado, ele confessava sua necessidade da misericórdia e graça divina, bem como sua posição de criatura diante do Soberano Criador. Ele não se auto justificava com uma falsa piedade, antes, reconhecia ser indigno de um simples olhar para o céu.
O que aquele fariseu não percebeu era que, a confiança depositada em suas próprias obras havia se tornado como uma trave que cegava seus olhos, fazendo dele um “crente” nominal, ao passo que o publicano, realmente pecador, reconhecia esse fato, professando dependência em Deus e não em si mesmo. Essa sinceridade lhe fazia ter um cisco nos olhos se comparado ao fariseu, que se achava “santarrão”, mas na verdade era um iníquo enrustido.
Segundo ponto: considerando que Jesus estava no meio de um sermão o qual tratou de diversos assuntos, Ele ainda comentou sobre a necessidade de “julgarmos” os falsos profetas.
Embora “julgar” não seja a palavra usada no contexto da passagem de Mt 7.15-23, podemos raciocinar desta forma. Nos versos que precedem este trecho, Jesus alerta sobre o perigo de se seguir um caminho largo, pois seu final é a perdição eterna.
Na sequencia, Cristo alerta sobre a prudência em nos guardarmos dos falsos profetas. Não seria uma insinuação de que estes conduzem seus seguidores por este caminho largo e espaçoso? De qualquer forma, ficou o alerta. Devemos nos precaver e o meio pelo qual os identificaremos se dá por meio de um critério analítico de seus frutos: “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7.16a). Fica claro que precisamos aperfeiçoar nosso senso kritikós, afinal, os tomates “proféticos” estão fresquinhos ou estragados?
Não toqueis nos meus ungidos
A outra expressão utilizada com maior frequência é “não toqueis nos meus ungidos”. Ela está baseada nas passagens de 1 Cr 16.22 e Sl 105.15.
Há, ainda, o episódio de Davi quando se escondeu numa caverna. Naquela ocasião, ele estava sendo perseguido por Saul há um tempo considerável e optou por fugir do rei e de seus homens. No meio dessa fuga, Davi se escondeu aguardando que Saul se fosse com seus homens.
Para sua surpresa, o rei precisava aliviar o ventre e foi justamente ao esconderijo em Davi se emcontrava. Enquanto Saul fazia suas necessidades, teve um pedaço da orla de seu manto cortado sem que percebesse.
Os homens que estavam com Davi até o incentivaram a se aproveitar da oportunidade, mas após obter um pedaço do manto de Saul, o jovem foragido acabou ficando com remorso e declarou a seus homens: “O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, ao ungido do Senhor, que eu estenda a minha mão contra ele, pois é o ungido do Senhor” (1 Sm 24.6).
Dessa forma, alguns evangélicos entendem que este é um princípio bíblico no tocante aos cuidados que devemos ter com os pastores e líderes de nossas igrejas.
Contradizer, discordar, questionar ou criticar os pastores, apóstolos, bispos, patriarcas ou qualquer outra categoria de “ungidos” de Deus seria um delito espiritual. É como se a unção de Deus fosse um ato de imunidade para tais líderes e o não cumprimento desse dever implicaria em consequências desastrosas para os transgressores.
Este conceito tomou corpo no meio evangélico e algumas pessoas preferem omitir suas opiniões com medo de represálias ou até mesmo da ira divina caso questione a postura pastoral.
Obviamente que não estamos aqui incentivando o desrespeito e a insubmissão às autoridades eclesiásticas. De modo nenhum! Antes, queremos demonstrar que tais conceitos são biblicamente deturpados e não podem servir para acobertar falhas morais e teológicas de determinadas lideranças evangélicas.
No caso do “ungido do Senhor” podemos ver algumas inverdades que vêm sendo propagadas.
Primeira inverdade: os ungidos são os líderes eclesiásticos. Isso se dá porque não há nenhuma ligação entre o cargo do rei com os ofícios eclesiásticos.
Como explica Nicodemus, a expressão “ungido do Senhor” é usada na Bíblia em referência aos reis de Israel que “eram oficialmente escolhidos e designados por Deus para ocupar o cargo mediante a unção feita por um juiz ou profeta. Na ocasião era derramado óleo sobre sua cabeça para separá-lo para o cargo”.[6]
Embora algumas denominações até utilizem de óleo para ungir seus pastores ou bispos em consagrações ou até mesmo nas cerimônias de ordenação, a expressão veterotestamentária “ungido”, referindo-se a líderes evangélicos, não encontra paralelo no Novo Testamento.
Os Apóstolos não tiveram nenhuma cerimônia de unção com Jesus, os diáconos tampouco com os Apóstolos, Paulo não descreve esse ritual para o comissionamento dos obreiros, enfim, sendo assim não podemos traçar tal paralelo.
Em contrapartida, os crentes em geral e não apenas líderes, são sim ungidos de Deus, selados com o Espírito Santo, o penhor de nossa salvação (2 Co 1.21,22; 1 Jo 2.20).
Segunda inverdade: não toqueis se refere a discordar, questionar, reprender, etc. Como já foi declarado, a proposta desse capítulo não é fomentar um desrespeito pelas autoridades eclesiásticas. Afinal, a Bíblia nos ensina: “Obedecei a vossos guias, sendo-lhes submissos; porque velam por vossas almas como quem há de prestar contas delas” (Hb 13.17).
Podemos citar várias outras passagens que incentivam de forma saudável a honra aos nossos líderes (Mt 10.40; Rm 15.30; 1 Co 4.1; 16.16; 2 Co 1.11; Gl 4.14; Ef 6.19; Fp 2.29; 3.17; 1 Ts 5.13; 1 Tm 4.12; 5.17; Hb 13.7).
O que está em questão é a proposta enganadora de sujeitar e manipular os fiéis sob um falso discurso de submissão.
Se voltarmos ao episódio de Davi na caverna, perceberemos que ele não tocou no “ungido do Senhor”, isto é, não o feriu, machucou, espancou ou matou. Todavia, é nítido que Davi repreendeu Saul por sua injustiça e falta com a verdade, além de colocar a causa que o afligia nas mãos do único que pode intervir com perfeita justiça (cf 1 Sm 24.8-12).
Romeiro explica essa situação dizendo que as passagens referentes à expressão em análise “não se referem a um questionamento ético ou doutrinário do líder, mas a algum perigo para a integridade física de um ungido de Deus”[7]
Podemos ver um caso semelhante ao de Davi no episódio de Abraão em Gerar. Nesta ocasião, o patriarca contou a meia verdade de que Sara era sua irmã, temendo a Abimeleque. Este até tomou Sara, mas foi avisado em sonho que seria punido caso tomasse-a por esposa.
Apesar de Deus ter proibido Abimeleque de tocar no profeta e ungido do Senhor, ou seja, de causar-lhe algum dano físico, ele não hesitou em repreender Abraão por ter-lhe mentido: “Que é que nos fizeste? E em que pequei contra ti, para trazeres sobre mim o sobre o meu reino tamanho pecado? Tu me fizeste o que não se deve fazer (…) Com que intenção fizeste isto?” (Gn 20.9,10).
Recorrendo à Igreja Primitiva, vamos perceber que “nunca os apóstolos de Jesus Cristo apelaram para a ‘imunidade da unção’ quando foram acusados, perseguidos e vilipendiados pelos próprios crentes”.[8]
O julgamento bíblico
Afinal de contas, devemos ou não julgar? O que a bíblia diz, portanto, sobre esse assunto? Veremos doravante alguns conceitos firmados pela Palavra de Deus.
Conforme já vimos, somos exortados a exercer o nosso discernimento. Paulo disse que devemos julgar todas as coisas e reter o que é bom (1 Ts 5.21). Este julgar não diz respeito a conjecturar ou especular a salvação de terceiros. Vale ressaltar outro ponto importante. Há uma enorme diferença entre julgar e condenar. Talvez seja este o maior temor que algumas pessoas enfrentam ao se deparar com livros ou artigos de apologética cristã.
Kuiper explica que, “julgar e condenar são duas coisas distintas, relacionadas, mas não idênticas”. Em seguida, ele exemplifica essa afirmação através do caso da mulher adúltera em Jo 8, mostrando que, “Jesus de fato julga esta mulher, mas não a condena. Ao dizer-lhe ‘vá e não peques mais’, Jesus indica que ela tinha pecado. Em si mesma, a acusação dos fariseus estava correta, e Jesus julgou o pecado como sendo pecado (…) Embora Jesus tenha julgado a mulher, ele não a condenou”.[9]
Como bem lembra Romeiro, quando Paulo chegou a Beréia, já possuía um currículo bem respeitado e até invejável. Ele havia estudado com um mestre renomado de sua época, Gamaliel, e desfrutava da confiança das autoridades que lhe deram autorização para perseguir os cristãos, além de ter passado por uma conversão fantástica.[10]
Apesar de tudo isso, os bereanos exerceram o juízo enquanto Paulo e Silas lhes anunciavam as boas novas. Lemos em Atos 17.11 que eles “receberam a palavra com toda avidez, examinando diariamente as Escrituras para ver se estas coisas eram assim”.
É como se o Apóstolo dos gentios fizesse uma citação messiânica de Isaías, por exemplo, e os ouvintes de Beréia procurassem na Escritura Sagrada, a fim de confrontar com o ensino paulino.
Encontramos, ainda, as advertências do Apóstolo João sobre o cuidado com heresias propagadas por pessoas que “não eram dos nossos; porque, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; mas todos eles saíram para que se manifestasse que não são dos nossos” (1 Jo 2.19).
Sendo assim, João afirma à Igreja que não desse crédito a qualquer pregador, “mas provai se os espíritos vêm de Deus; porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo” (1 Jo 4.1).
Estes falsos profetas , gnósticos como chamamos hoje, estavam ensinando heresias cristológicas, negando a natureza humana de Cristo. Seus ensinos eram místicos e misteriosos e eles alegavam uma revelação especial para suas doutrinas.
Como diferenciar, então, um pregador cristão de um gnóstico? A Igreja deveria julgar o ensino do mesmo: “Nisto conheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não é de Deus; mas é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que havia de vir; e agora já está no mundo.” (1 Jo 4.2,3).
Outra controvérsia que a Igreja enfrentou em seus primeiros anos foi a dos judaizantes. Alguns fariseus que passaram a professar a fé cristã, não se contentaram com a simplicidade do Evangelho e não quiseram abrir mão de alguns aspectos do judaísmo farisaico e fizeram de tudo para misturar o Evangelho puro e simples com a Lei de Moisés.
Essa controvérsia trouxe sérios aborrecimentos ao Apóstolo Paulo, o qual exortou irmãos que estavam deixando a doutrina de Cristo para ir após outro evangelho em sua carta aos gálatas. Uma mensagem diferente da mensagem de Cristo deveria ser descartada, ainda que fosse pregada por anjos ou qualquer apóstolo (Gl 1.8).
As principais religiões judaicas do primeiro século da era cristã eram os fariseus, saduceus, zelotes e essênios. Cada um desses grupos tinham costumes que lhes eram próprios e com a proliferação do cristianismo para os gentios, houve um grande choque cultural entre estes e os judeus, os quais quiseram impor a continuação da circuncisão.
Esta discrepância doutrinária trouxe uma discussão acalorada entre Paulo, Silas e os fariseus recém-convertidos. Tal controvérsia só pôde ser apaziguada em uma reunião conciliatória em Jerusalém por volta do ano 51. d.C. (cf At 15).
Esse problema judaizante ainda teve outras repercussões. Paulo chegou a ter uma leve desavença com Pedro por conta de um posicionamento mais explícito e chegou até mesmo a repreendê-lo (Gl 2.11-21).
Houve julgamento (peneiramento, distinção, seleção, separação e decisão) neste encontro de Paulo em Antioquia. Não dava para seguir dois evangelhos, um da circuncisão e outro da graça.
Mas isso não é uma falta de amor ou um ato faccioso? De forma alguma, o próprio Paulo deixou claro que, o amor não se alegra com a injustiça e sim com a verdade (1 Co 13.6). Seria muito fácil defendermos um falso amor baseado numa falsa tolerância. Porém, isso não seria o amor bíblico, mas um ecumenismo de “teologias” variadas.
Apesar de todas essas bases bíblicas, muitos líderes não têm abertura para uma discussão teológica. Preferem permanecer no erro ao invés de dar o braço a torcer humildemente. Mesmo sabendo disso, Paulo lutou pela sanidade do evangelho. Aos que não aceitavam suas ideias, ele perguntava: “Tornei-me acaso vosso inimigo, porque vos disse a verdade?” (Gl 4.16).
O julgamento na história da Igreja
A Bíblia trata do caráter apologético das doutrinas centrais da fé cristã em praticamente todos os seus livros do Novo Testamento. Desde a ressurreição de Cristo, muitas heresias se introduziram no meio da Igreja. Embora os Apóstolos, os pais apostólicos, os pais apologistas e os pais polemistas tenham lutado pela fé que uma vez nos foi dada, alguns resquícios dessas falsas doutrinas permaneceram e/ou evoluíram para os séculos posteriores.
Na presente era da Igreja, encontramos esses resíduos primitivos em conceitos teológicos profundamente equivocados. Os atributos de Deus são confundidos em muitas seitas pseudo-cristãs. A natureza de Cristo ainda sofre má interpretação em relação a Sua divindade e humanidade. O Espírito Santo é questionado e confundido em alguns grupos religiosos. A doutrina da graça ainda é pervertida. O cânon das Escrituras continua a ser atacado por alguns supostos cristãos. Certos homens insistem em recosturar o véu. A simonia permanece desgraçando a autenticidade do cristianismo… E por aí vai.
A maioria das heresias ocorre em virtude da ênfase exageradamente mística que alguns dão à religiosidade.[11] É certo que Deus é um ser pessoal e que se relaciona com seu povo. Todavia, devemos buscar explicações para nossas experiências à luz da Palavra de Deus e não vice-versa.
Berkhof diz que, esta “posição deve ser sustentada em oposição a todas as classes de místicos”, pois eles alegam revelações especiais, bem como um conhecimento metafísico não mediado pela Palavra de Deus, o que pode nos levar “a um oceano de ilimitado subjetivismo”.[12]
Na história da Igreja, os primeiros cristãos precisaram seguir a orientação de Judas por inúmeras vezes: “senti a necessidade de vos escrever, exortando-vos a pelejar pela fé que de uma vez para sempre foi entregue aos santos” (Jd 3).
Os efésios são elogiados por Jesus por não se conformem com um grupo chamado em Apocalipse de Nicolaítas (Ap 2.6,15).
A interpretação dessa passagem é analisada em pelo menos três perspectivas: 1) eram seguidores de Nicolau, um dos sete que foram designados diáconos em At 6 e que acabou deixando a ortodoxia; 2) gnósticos que queriam se infiltrar na igreja e 3) pessoas que seguiam o ensinamento de falsos Apóstolos e de Balaão.[13]
Embora não haja consenso sobre a origem dos nicolaítas, sabemos que eles pregavam uma versão inovadoramente imoral do Cristianismo.
Era um evangelho sem exigências, liberal e sem proibições, no qual queriam gozar o melhor da igreja e o melhor do mundo. Eles incentivavam os crentes a comer comidas sacrificadas aos ídolos e diziam que o sexo antes e fora do casamento não era pecado, estimulando a imoralidade.[14]
Clemente de Alexandria disse que Nicolau (ele cria que fosse um dos sete diáconos) foi repreendido por se enciumar de sua mulher que era muito bonita. Respondendo a essa reprovação, ele disse que quem quisesse poderia tomá-la como esposa, ou seja, ter relações sexuais com ela. Clemente acrescenta, ainda, que Nicolau passou a ensinar que os apóstolos tinham permitido relações promíscuas e comunitárias com as mulheres.[15]
Eusébio de Cesaréia confirma a citação de Clemente em sua história eclesiástica. Entretanto, alega ter pesquisado sobre a vida de Nicolau e descobriu que, embora este tenha ensinado que “cada um deve ofender a própria carne”, ele mesmo não viveu com outra mulher a não ser sua esposa, manteve suas filhas em virgindade até idade avançada, bem como seu filho incorrupto. Eusébio entende que Nicolau tenha permitido sua mulher se relacionar com outros homens para suprimir sua paixão carnal e os prazeres que buscava com tamanho empenho.[16]
Infelizmente, alguns seguiram a prática nicolaíta e se entregaram às paixões sob a alegação de que a carne para nada se aproveita. Easton disse que “eles se pareciam com uma classe de cristãos professos, que procuravam introduzir na igreja uma falsa liberdade ou licenciosidade, desta forma abusando da doutrina da Graça ensinada por Paulo”.[17]
A Igreja precisou lidar com muitas heresias no decorrer de sua história. Paulo até declarou que, “até importa que haja entre vós heresias, para que os que são sinceros se manifestem entre vós” (1 Co 11.19 – ARC).
As heresias faziam separação dos verdadeiros crentes – que buscavam seu estilo de vida no uso da aplicação correta da sã doutrina – e dos falsos – que optavam por uma versão incongruente do evangelho.
Podemos ver exemplos da luta doutrinária da Igreja com os maniqueístas que davam ênfase num dualismo onde Deus e o diabo eram dotados de poder co-iguais, com o arianismo que negava a natureza divina de Cristo, com os monarquianistas dinâmicos (ou adocianistas) que diziam que Cristo tinha assumido a forma divina somente após o batismo, com os ebionitas que entendiam que Jesus fosse apenas humano; com os docetas que criam que Ele fosse apenas divino e que Seu sofrimento tinha sido apenas simbólico; com os eutiquianistas (monofisistas) que ensinavam uma natureza amalgamada da divindade e humanidade de Cristo; com os apolinarianistas que negavam a natureza humana completa de Jesus, alegando que o Logos substituiu a alma humana de Cristo; com os sabelianos (monarquianistas modalistas ou somente modalistas) que diziam ser Cristo o segundo modo das três sucessivas manifestações de Deus; com os patripassianistas, uma variante desta última, que ensinavam que o próprio Pai havia morrido na cruz (patripassianismo).
Embora dezenas de heresias tenham sido citadas aqui, muitas outras ainda ficaram faltando. Algumas por falta de espaço, outras por falta de pertinência temática. Contudo, que a Igreja continue utilizando o divino par de lentes que “coletando-nos na mente conhecimento de Deus de outra sorte confuso, dissipada a escuridão, mostra-nos em diáfana clareza o Deus verdadeiro”,[18] afinal, “A Bíblia, toda a Bíblia e nada mais do que a Bíblia, é a religião da igreja de Cristo.”[19] Ela é efetivamente “absoluta ou obsoleta”.[20]
Conselhos práticos
Para finalizar esse capítulo gostaria de trazer alguns conselhos práticos para que os cristãos melhorem seus critérios e exerçam o discernimento bíblico.
Segundo Romeiro, é preciso tomarmos cuidado em pelo menos quatro circunstâncias: nas livrarias evangélicas, nas editoras evangélicas, na educação teológica e até mesmo ao escolher uma igreja.[21]
Não é porque uma livraria se diz evangélica que ela possui apenas materiais evangélicos. Algumas delas vendem produtos de outras religiões. Precisamos verificar criteriosamente do que se trata.
Recentemente, um amigo meu me emprestou um livro alegando ser muito bom. Segundo ele, era um ótimo material escatológico que ele havia comprado numa livraria evangélica em Juiz de Fora, Minas Gerais. Como ele disse que me traria o livro no dia seguinte, perguntei-lhe, curioso, qual era o autor e ele me respondeu que era Paiva Netto.
Fiquei assustado com a resposta, pois Netto é o atual presidente da LBV, um grupo espírita. O livro chama-se “Apocalipse sem medo” e é recheado de heresias. Não sei como o meu amigo conseguiu acha-lo bom!
Algumas dicas para se evitar leituras controvertidas, é tentar conhecer o autor, saber de que igreja ele é, qual a sua reputação e a afinidade teológica dele com sua denominação.
Outro cuidado se dá em relação à editora. Longe de querer generalizar, existem algumas que apoiam visivelmente materiais controversos e cujo forte é a publicação de livros de batalha espiritual, demonologia, etc.
Algumas denominações possuem editoras específicas, como é o caso das Assembléias de Deus com a CPAD e a Betel; a Igreja do Nazareno com a CPN; a Metodista Wesleyana com a CPIMW; a Batista com a Editora Batista Regular e a JUERP e a Presbiteriana com a Cultura Cristã.
Há, ainda, outras excelentes editoras que não foram citadas, como a Vida Nova, Hagnos e Fiel. De qualquer forma é preciso estar atento.
O cuidado na educação teológica também é muito importante. Muitas pessoas estão aderindo a cursos de teologia que não possuem nenhuma integridade.
A grande maioria de cursos teológicos no Brasil é sem o reconhecimento do MEC. Isso, todavia, não os desmerece, pois há o reconhecimento denominacional. Antes de fazer algum curso é importante verificar a que denominação o mesmo é ligado, qual a confissão de fé e se sua igreja o aprova.
Há muitos cursos prometendo formar um “teólogo” em alguns meses. Conheci, recentemente, um rapaz que se intitula Doutor em Divindade. Segundo ele, o título foi conseguido em três anos de estudo, sendo um para o bacharel em Teologia, mais um para o mestrado e mais um para o doutorado.
Cursos como esse, além de manchar a reputação dos verdadeiros teólogos, formam titulados superficiais e que estão muito aquém do que se espera deles. Infelizmente, há muitos irmãos sendo enganados.
Finalmente, fica o alerta para a escolha de uma igreja. Com isso, não estou sugerindo ao amado leitor que mude de denominação. No meu caso não houve oportunidades de mudar o sistema gedozista e optei em me desligar de meu primeiro ministério. Saí de lá amigavelmente e a escolha seguinte seria muito séria. Eu precisava ser criterioso antes de tomar a decisão de qual denominação me filiaria.
Romeiro dá algumas dicas nesse sentido: 1) compromisso em ensinar a Bíblia de forma séria e equilibrada; 2) preferência por igrejas filiadas ao invés de independentes; 3) declaração de fé consistente; 4) prestações de conta e uso responsável dos recursos e 5) denominação e liderança moralmente idôneas.[22]
Meu desejo é que esse livro sirva para mover o coração de líderes a uma mudança positiva, a uma volta ao cristianismo puro e simples. Ao invés de dissidências e separações, que haja humildade para consertar o que vem prejudicando o autêntico Evangelho.
Notas
* Trecho do livro “A Verdade Sobre o G-12″, de autoria de Vinicius Couto.
[1] BROMILEY, Geoffrey W. (Ed.). The International Standard Bible Encyclopedia. Grand Rapids, Michigan, 1979, vol.l, p. 947.
[2] VINE, W. E. Dicionário Exegético e Expositivo. CPAD. Rio de Janeiro, 2009, p. 568.
[3] STRONG, James. Nueva Concordancia Strong Exhaustiva. Editorial Caribe. Nashville, 2002, p. 605.
[4] Entenda-se carismático como uma pessoa que tem a atratividade de um público em geral. Não confundir com o movimento carismático.
[5] KUIPER, Doug. Julgar: o dever de todo cristão. Byron Center Protestant Reformed. Michigan, 1999, p. 13.
[6] NICODEMUS, Augustus. Como entender a ordem para não tocar no ungido do Senhor? Revista Defesa da Fé. Ano 13, n°104 – Julho/Agosto de 2013, p.64 .
[7] ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em Crise. São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 41.
[8] NICODEMUS, Augustus, Op. Cit., p. 65.
[9] KUIPER, Doug. Op. Cit., p. 14.
[10] ROMEIRO, Paulo. Op. Cit., p. 202.
[11] BREESE, Dave. Conheça as marcas das seitas. Fiel, 2001, pp.18-22
[12] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Cultura Cristã, 2012, p.614.
[13] KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento: Apocalipse. Cultura Cristã, 2004, pp. 158-159.
[14] LOPES, Hernandes Dias. Comentário bíblico expositivo de Apocalipse. Hagnos, 2005, p. 21.
[15] CLEMENTE, Tito Flávio. Stromata 3.4.
[16] CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. CPAD, 1999, pp. 107-108.
[17] EASTON, George. Easton’s Bible Dictionary: Nicolaitanes. Thomas Nelson, 1897.
[18] CALVINO, João. Institutas. I, VI, 1.
[19] SPURGEON apud BLANCHARD, John. Pérolas para a vida. Edições Vida Nova, 1993.
[20] HAVNER apud BLANCHARD, John. Op. Cit.
[21] ROMEIRO, Paulo. Op. Cit., pp. 194-205.
[22] Ibid, pp. 199-205.
autor(a)
Vinicius Couto
Pastor, teólogo, professor, escritor e pesquisador. Graduou-se em Administração de Empresas pela Universidade Castelo Branco e em Teologia pela FaeteSF. Possui pós-graduação em Ciências da Religião pela Universidade Cândido Mendes e em História da Teologia pela FaeteSF. É, ainda, pastor titular da Igreja do Nazareno em MG e autor dos livros “Os três Choros de José do Egito”, “A Verdade Sobre o G-12” e “Introdução à Teologia Armínio-wesleyana”.