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Copa do Mundo, Protestos e “Desordem” Social: e Deus com isso?

Por Cleiton Maciel Brito

Desde que a FIFA ratificou em 30 de outubro de 2007 que o Brasil seria sede da COPA DO MUNDO DE 2014, prontamente se ouviu da boca do então presidente Lula e dos organizadores do evento que este deixaria um “enorme legado para o país”. Passados 6 anos, e às vésperas da abertura contra a Croácia no dia 12 de junho em São Paulo, esse tal “legado” ainda não foi visto: o transporte público não melhorou, os investimentos em portos e aeroportos serão insuficientes, e o o problema da saúde, educação e segurança e moradia nem entraram na pauta do legado.

Entretanto, diante do contraste¹ entre os bilhões investidos nos estádios exigidos pela FIFA, e das precárias condições dos serviços públicos oferecidos no país², esses temas que ficaram de fora da pauta “Copa do Mundo” foram politizados pelas sociedade civil desde meados do ano passado, quando multidões ganharam as ruas, em protestos que parecem caracterizar um novo “espírito” do homem brasileiro, e descaracterizar a imagem da “cordialidade” supostamente “inerente” ao Brasil.

Mas foi neste ano que esse “espírito” ganhou materialidade mais substantiva, quando vários movimentos sociais (de professores, policiais, metroviários, trabalhadores sem teto) passaram a fazer protestos por melhores salários, melhores condições de trabalho e acesso à moradia, causando aquilo que muitos jornalistas, políticos  e alguns líderes religiosos têm denominado como “desordem social”.

É sobre a forma como estes últimos, os líderes religiosos, têm discutido os recentes protestos sociais que eu gostaria de refletir, tecendo, com efeito, curtas considerações sobre qual deveria ser, a meu ver, a visão cristã sobre a realidade social; mais precisamente, quando esta se encontra “fora da ordem”.

Jornalistas e políticos, de forma geral, buscam justificar seu pensamento sobre momentos de “agitação social” de forma laica, partindo de pressupostos político-filosóficos, entre os quais os que apregoam que mazelas sociais são questões “marginais” dentro da ordem sócio-econômica. Logo, uma maior oferta de liberdade de mercado para os indivíduos e empresas empreenderem levaria a um “ajustamento natural” da sociedade. Nesse ponto de vista, greves, protestos, movimentos reivindicatórios tenderiam a trazer mais crises às relações sociais, posto colocarem em xeque o movimento que conduz ao  “bem-estar”, que se constitui em grande medida, na adequação entre oferta e demanda de trabalhadores, produtos e serviços controlados pela mão do mercado.

Alguns líderes religiosos têm posição semelhante a esta  no tocante às questões sociais, no entanto,  dão um corpo teológico à “mão” do mercado, caracterizando-o, assim, sob um pensamento que poderíamos chamar de “moral social com fundamento transcendental“, posto usarem a Bíblia como fonte de concepção do social. Isso tem implicações que precisam ser melhor avaliadas pela igreja, uma vez que, no afã de declararmos qual seria a “vontade de Deus” para a organização da sociedade, podemos acabar por cair em certo conservadorismo político que esconde – e  não elimina – a exploração, as desigualdades e o preconceito.

Diante dos recentes protestos sociais no Brasil, é exatamente esse pensamento que tenho visto ganhar forma em diversos escritos religiosos, que passam a usar “Deus”, por um lado, como ponto de desqualificação das ações de reivindicação social que sindicatos e outros grupos têm feito, e por outro, como justificação das ações do Estado no restabelecimento da “ordem” (que no caso brasileiro, historicamente, é sinônimo de violência), apoiando-se, para isso, em versículos bíblicos, como o de que “as autoridades são constituídas por Deus para o bem e para fazer justiça” (Romanos 13:1-4).

A questão central, creio eu, é que tais textos precisam ser observados ou “aplicados” com os olhos fitados na formação das distintas realidades sociais, tomando o cuidado de não termos opiniões apressadas sobre o que é “ordem” ou “desordem”. Se assim não procedermos, corremos o risco de pecarmos contra o Senhor ao justificarmos a ação das ditas “autoridades” que, no Brasil, têm negligenciado o próprio mandamento do “promover o bem”. Isso pode ser visto, por exemplo, na ações policiais efetuadas nas periferias das cidades brasileiras, e o tratamento dado pela “autoridade policial” aos pobres, especialmente, negros.

É preciso refletir o que seria o “bem” ou o “mal”, “ordem ou desordem” e o “fazer justiça” no contexto sócio-histórico do Brasil. É a mesma coisa que na Noruega ou Suécia ou Serra Leoa? E ainda: no âmbito da democracia, a sociedade civil (sindicatos, organizações comunitárias, imprensa, grupos religiosos) não é uma autoridade igualmente legítima para reivindicar direitos negligenciados pelo Estado? Mais: se essa autoridade, o Estado, é constituída por Deus³ para a promoção do bem, por que estamos tão mal? Se a culpa é do “pecado”, como asseveram igrejas históricas, países como Austrália, Canadá, Noruega, Nova Zelândia, Japão, etc. são menos “pecadores”, posto serem notoriamente sociedades com forte igualdade social? E se o mérito destes países é da “graça comum”, como alguns argumentam, a nós, latinos, africanos, ela foi-nos dada à conta-gotas?

De forma sucinta: penso que é necessário à igreja historicizar a ação e as organizações humanas, vendo o mundo como estrutura em contradição, que, sob movimento dialético, vai sendo construído a depender das relações e forças sociais em jogo. Do contrário, quer dizer, ao se olhar para a realidade (e mais especificamente, para as autoridades), interpretando-a como forma fina e acabada de uma vontade transcendente, se incorre no erro da não contextualização, da justificação de injustiças sociais, do achar que “tudo será resolvido com o tempo” (mais 500 anos e o Brasil se transformará no paraíso dos trópicos) e que as autoridades per si “fazem justiça”. Enfim, da não observação de que o que somos hoje subjetiva e socialmente é resultante, em grande parte, da atividade histórica dos homens. Talvez seja esta uma das razões que levou o próprio Verbo a ter-se feito carne.

¹ Um outro contraste seria esse: a FIFA e as empreiteiras lucrarão bilhões com a Copa, os jogadores e emissoras de televisão, milhões. Já à população brasileira caberá a “alegria”.

² Seria necessário um artigo específico para problematizar as “causas sociais” dos protestos, o que farei em breve.

³ Em uma análise teológica fria. Penso que a autoridade é constituída por Deus de forma “ideal”, mas não de forma “real”. Há enorme atividade humana nesse processo.

 

autor(a)

Cleiton Maciel Brito

Cleiton Maciel Brito

Amazonense, 25 anos, doutorando em Sociologia na Universidade Federal de São Carlos, e membro da Igreja Presbiteriana do Coroado III em Manaus. Casado com Jeanne Maciel. Neste espaço escrevo sobre temas da área de apologética cristã, estudos bíblicos, bem como discuto a relação entre religião e sociedade.

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