Delação premiada da alma
“Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte.” Romanos 8:1-2
Somos salvos pela graça! Isso significa que nada fizemos para merecer a salvação. Salvos pela graça, mediante uma fé da qual Ele é o autor e consumador. Em outras palavras, Ele deu o pontapé inicial e é quem vai concluir a obra. Entender isso é essencial para que desfrutemos plenamente da paz oferecida em Jesus.
Porém, o fato é que, mesmo salvos, somos mantidos cativos pela lógica meritocrática. Ainda que acreditemos que a salvação independa de mérito, agimos como se dependesse. Nossa mente está viciada em padrões de pensamentos profundamente arraigados, aos quais Paulo chama de “fortalezas espirituais” que devem ser derrubadas até que não fique pedra sobre pedra (2 Co.10:4).
Para Paulo, andar “segundo a carne” é aderir a uma espiritualidade que dependa do desempenho, enquanto que viver “segundo o Espírito” é depender exclusivamente da graça. Os que militam segundo a carne “inclinam-se para as coisas da carne”, mas os que militam segundo o Espírito, para as coisas do Espírito. A inclinação da carne é morte, a do Espírito é vida e paz.
Qualquer um que tenha abraçado o evangelho com consciência vai sinalizar positivamente para estas preciosas verdades. Porém, terá que enfrentar padrões insistentes de pensamentos. A gente diz crer na graça, mas segue dependendo da própria performance.
Quem tenta agradar a Deus a partir da domesticação de suas pulsões, invariavelmente vai desagradá-lo, pois se nega a depender da graça para depender de si mesmo. É como tentar enfrentar as fortes correntezas de um rio e acabar sendo levado por elas.
Quando o apóstolo diz que a inclinação da carne é inimizade contra Deus, não é apenas por causa de suas obras más, mas por retroalimentar o ciclo do orgulho humano. Mesmo as coisas boas que eventualmente praticar, não passarão de insulto à graça divina. Depender da carne, mesmo que para tentar agradar a Deus, resultará em inimizade contra Deus, pois a mesma não pode sujeitar-se à lei de Deus. Portanto, só há uma maneira de agradá-lo: estando no Espírito e não na carne. Rompe-se a lógica meritória. Rasga-se o livro caixa existencial, onde registramos nossas “entradas” e “saídas”, “créditos” e “débitos”.
A conclusão de Paulo não poderia ser outra, senão de que “somos devedores, não à carne para viver segundo a carne” (Rm.8:12).
Aqui, o apóstolo revela o “x” da questão. Sabe quando adestramos um animal, condicionando-o a responder conforme desejamos? Como se dá este condicionamento? Através da recompensa. Ele não age mediante reflexão, considerando as possibilidades, os prós e os contras. Não. Ele age por ter seus instintos aguçados pela oferta de uma recompensa. Assim é a carne.
Quando a adestramos, temos a ilusão de que finalmente ela se submeteu à lei de Deus. Então, inconscientemente dizemos a ela: Boa menina! Já que obedeceu ao comando, vou te recompensar. E geralmente, a recompensa que ela espera é algo que desagrada a Deus. Mesmo que seja apenas a manutenção de um sentimento de orgulho, de superioridade ( eu disse “apenas”?… como se isso por si só não se constituísse no maior insulto que se possa fazer a Deus).
Agora, vamos analisar o outro lado da moeda.
Geralmente, quando atacamos a doutrina das obras meritórias, abordamos apenas o aspecto do mérito, negligenciando o aspecto do demérito. E assim, nossa consciência se mantém refém sem se aperceber disso.
E quando pecamos, o que fazemos? Inconscientemente, buscamos uma maneira de nos infringir algum castigo. A lógica aqui é a mesma, a do mérito e demérito. O nome disso é penitência. Tento convencer-me de que meu pecado foi tão grave que a maneira de castigar-me é renunciando qualquer coisa de bom que a vida possa me dar e aceitando com resiliência a mediocridade. Vale salientar que nem sempre isso ocorre no nível da consciência. Na maioria das vezes é inconsciente.
“Não mereço nada melhor que isso”, nos convencemos. Ou como diz o adágio, “pra quem é, bacalhau basta.”
Há que se romper com tal lógica perversa se quisermos desfrutar do que Deus, por Sua graça, tem reservado para nós a fim de que nossa existência sirva a Seus propósitos. E isso faremos quando aprendermos a depender exclusivamente de Sua graça e não na força de nosso braço.
Em se tratando de salvação, nada fizemos para merecê-la e nada podemos fazer para perdê-la. Em se tratando do propósito de Deus para a nossa existência, o princípio é o mesmo.
A lógica meritocrática nos mantém reféns do passado. A graça nos liberta e nos remete para o futuro. Não vivemos em função do que fizemos ou deixamos de fazer, mas em função daquilo para o qual fomos alcançados.
Em Filipenses 3, Paulo fala sobre a subversão da lógica do livro caixa. Ele diz por A + B que o que antes considerava lucro, ele agora considerava perda. Isso significa que ele não levava mais em conta nada além da própria graça. Não há mais nada a ser cobrado. Nada a cobrar de si, nada a cobrar dos demais. Deixamos para trás as coisas que devem ficar no passado e avançamos para as que estão diante de nós, a fim de alcançar aquilo para o qual fomos alcançados.
Se a carne busca nos submeter às suas pulsões, o Espírito nos guia pelo Seu ímpeto. A carne nos segura ao passado, o Espírito nos remete para frente. Não se trata apenas de impulsos, mas de ímpeto. Impulso é força que vem de fora. Ímpeto é força que vem de dentro.
Imagine um carro enguiçado sendo empurrado ladeira a cima. Cada vez que empurram, o carro anda alguns centímetros e voltar a descer com mais força ainda. É como uma reação pendular. Mas se o motorista girar a chave e lograr fazer funcionar o motor, o carro vai subir a ladeira sem dificuldade. A força do motor gera o ímpeto necessário para fazê-lo andar sem voltar para trás.
Se desligar o carro e destravar o freio de mão, o carro vai descer a ladeira sem que ninguém consiga detê-lo. Assim é quem se entrega de vez às pulsões da carne. Qualquer um que se coloque no caminho é atropelado.
Outra passagem que lança luz sobre a questão é encontrada em I João 3:20-21:
“Sabendo que, se o nosso coração nos condena, maior é Deus do que o nosso coração, e conhece todas as coisas. Amados, se o nosso coração não nos condena, temos confiança para com Deus.”
Tenho a impressão de que temos entendido equivocadamente esta passagem. Se nosso coração é enganoso, não devemos confiar em seu veredito, seja-nos favorável ou não, condenando-nos ou absolvendo-nos. Se ele nos condenar, devemos recorrer a uma instância superior: DEUS! Mas se ele nos absolver, nossa confiança segue sendo em Deus.
Mesmo quando nos absolve, sua motivação pode não ser confiável. O que ele realmente pretende é conquistar nossa confiança para que no futuro, nos submetamos cegamente a qualquer de suas avaliações.
Redobremos os cuidados para não confundirmos a voz do Espírito com a de nossa própria carne. Quando o Espírito nos justifica, Ele não nos inocenta. Temos a convicção de que erramos, porém, nos arrependemos. Já a carne tenta nos inocentar, apresentando-nos justificativas para os nossos erros. Não confunda justificação com justificativa. Ser justificado é ser perdoado e receber de Deus um nada-consta do tribunal celestial. Deus só justifica quem admite não haver justificativa para os seus pecados. O veredito do Espírito ao nos justificar produz verdadeira paz para a nossa consciência. O veredito do nosso coração, por ser aliado de nossa carne, produz uma sensação de trégua. A paz de Deus é eterna. A trégua proposta pela carne é temporária.
Da mesma forma, quando pecamos, o Espírito não põe pano quente e nem propõe algum tipo de acordo. Somos tomados por uma tristeza que visa conduzir-nos ao arrependimento sincero. Se o Espírito nos conclama ao arrependimento, o diabo segue nos acusando. E a carne, o que faz? Descaradamente, ela nos propõe uma espécie de delação premiada. E assim, põe para fora todos os nossos podres, mas sai ilesa, como verdadeira heroína. Não se esqueça de que se trata de “delação premiada”. Mais cedo ou mais tarde, ele cobra seu prêmio. E não pense que ela se contenta apenas em ser ‘inocentada’. Ela quer mais. Ela quer o direito de continuar pecando a seu bel-prazer. E assim, o ciclo se retroalimenta ad infinitum.
Somente a graça interrompe este “karma”, liberando-nos para viver plenamente o propósito de Deus para a nossa existência neste mundo.
Hermes C. Fernandes.